SANTA GERTRUDES DE HELFTA (A GRANDE), E AS PRIMÍCIAS DA DEVOÇÃO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
“A
tão popular como benéfica devoção ao Coração de Jesus foi
objeto de uma lenta evolução através dos séculos. (…)
S.
João Evangelista, o Apóstolo privilegiado que, reclinado sobre o
peito do Salvador, teve a dita de sentir e ouvir o Coração do
Redentor a palpitar fortemente de amor pelos homens. S. João foi
quem lançou a semente da devoção ao amantíssimo Coração,
quando, no seu Evangelho, pintou ao vivo a ferida aberta no costado
de Jesus pela lança do soldado1.
Dificilmente
se encontraria nos primeiros séculos da Igreja qualquer indício da
devoção ao Coração de Jesus.
De
variadas formas se exteriorizou a devoção às cinco Chagas. Aqui
era uma Santa Clara que repetia frequentemente a jaculatória:
Vulnera
quinque Dei sint medicina mei3;
além
era um devoto peregrino que jejuava cinco dias seguidos para venerar
as cinco feridas do Crucificado. Suso bebia cinco vezes em cada
refeição; uma santa religiosa interrompia a oração para fazer
cinco prostrações, etc.
Foi,
porém, a iconografia das cinco Chagas que mais diretamente, talvez,
concorreu para a manifestação da devoção ao Coração de Jesus.
Conquanto
fosse objeto duma devoção muito particular, a Chaga do lado não
fora ainda aproveitada como porta franca para atingir ao Sagrado
Coração. Uma fortuita necessidade de adaptação foi a ocasião de
descobrir aos olhares e à devoção dos fiéis o Coração ferido
como termo da Chaga do lado.
Na
idade média, com efeito, era muito divulgado e venerado o brasão
das cinco Chagas. Os pés e as mãos transpassadas do Salvador era
dispostas heraldicamente no brasão. Surgindo, porém, a dificuldade
de representar a chaga do lado, introduziu-se o costume de desenhar
um Coração ferido, aberto por uma Chaga, ocupando o centro do
brasão. Por cima do Coração dispuseram-se as duas mãos
traspassadas e por baixo os pés igualmente com os sinais das Chagas.
Eis
a primitiva representação do Coração de Jesus; eis o primeiro
passo para o advento que doravante irá crescendo de dia para dia.
Pela
porta da Chaga do costado, pela deliciosa avenida aberta pela lança
do soldado a alma penetra até ao Coração de Jesus. Mas quem
mergulhará naquele imenso abismo de amor, quem desvendará os
mistérios ocultos, as inefáveis ternura desse Coração amante?
Só
aquele a quem o mesmo Coração se dignar revelar-se. E foram
precisamente duas filhas de S. Bento, Santa Matilde e Santa
Gertrudes, ambas do mesmo mosteiro, de Helfta, as primeiras
privilegiadas a quem Deus concedeu a graça singular de penetrarem os
arcanos insondáveis do Coração de Jesus.
No
Livro
da graça especial
(Revelações de Santa Matilde) e no Arauto
do amor divino
(Revelações de Santa Gertrudes) veem consignados os extraordinários
favores do Sagrado Coração às duas confidentes de Jesus e
confidentes uma da outra.
Estes
dois livros, muito divulgados após a morte das das santas, acenderam
o fogo da devoção ao Coração de Jesus, cujos abismo de amor
infinito as almas agora conheciam.
Só,
porém, quatro séculos mais tarde é que a devoção ao sagrado
Coração chegará ao seu apogeu, escolhendo Deus como instrumento
dos seus amoráveis desígnios uma filha da Visitação – Santa
Margarida Maria Alacoque – e um membro da Companhia de Jesus, o
venerável Pe. Cláudio de la Columbière, diretor da Santa.
Santa Gertrudes (Mosteiro de Villa Mayor) |
A
instituição da festa do Coração de Jesus e as manifestações e
hinras públicas ao mesmo divino Coração estendidas pelo Papa à
Igreja universal, à instâncias de Santa Margarida Maria, não são
mais do que um complemento e confirmação dos princípios
estabelecidos por Santa Gertrudes. Paray-le-Monial é o esplendor
magnífico de um sol que tivera seu despontar em Helfta.
Ao
calor e à luz deste sol, a devoção ao Coração de Jesus foi
crescendo mais e mais sob múltiplas formas(1ª Sextas-feiras,
Apostolado da Oração, etc.) até ser gloriosamente coroada pela
consagração do mundo inteiro ao divino Coração, autorizada e
mandada por Leão XIII, a instâncias da vidente, superiora do Bom
Pastor do Porto, Sóror Maria do Divino Coração.
Descritas
já resumidamente as fases pelas quais passou a devoção ao Coração
de Jesus, tempo é de volta a Santa Gertrudes e determinar a
influência por ela exercida na expansão de tão salutar devoção.
“O
sofrimento é um dote de noivado com que Jesus costuma presentear as
almas por ele escolhidas para suas esposas amadas. Assim o significou
um dia o Senhor a Gertrudes, do modo seguinte.
Com
toda devoção do coração oferecia ela a Deus todos os seus
sofrimentos físicos e morais, quando Jesus lhe tocou a vista
esquerda com o anel da mão esquerda, símbolo da dor física. Logo a
seguir a santa virgem sentiu uma viva dor naquela vista que nunca
mais voltou ao seu primeiro estado. Este procedimento do Senhor
fez-lhe compreender que o anel é o sinal das bodas nupciais, como só
sofrimentos corporais e espirituais são o sinal infalível da
eleição divina e dos desposórios da alma com Deus4.
Se
de Moisés se dizia que falava com Deus como de amigo para amigo, de
Gertrudes a Jesus pode dizer-se que se entretinham mutuamente com a
familiaridade e a intimidade de esposos. Entre Jesus e sua amada
estabeleceu-se como um verdeiro noivado preparatório para uma sólida
e íntima união de místicos desposórios.
Leia-se,
por exemplo, esta comovente e doce página do livro das Revelações5:
'O Senhor Jesus apareceu um dia à Santa e pediu-lhe o coração.
Dizendo: «Minha
filha, dá-me o teu coração».
Logo ela lho ofereceu com alegria e pareceu-lhe que Jesus o tomava e
o aplicava ao seu Coração sagrado sob a forma de um tubo que descia
até à terra, para sobre os homens derramar profusamente os eflúvios
da divina Bondade. Disse-lhe depois o Senhor: «Doravante
eu porei as minhas delícias em me servir do teu coração. Ele será
o canal que, saindo da fonte viva do meu Coração sagrado, irá
derramar torrentes de consolação sobre os que se dispuserem a
receber estes eflúvios, isto é, recorrem a ti com humildade e
confiança»'.
O
coração de Gertrudes era débil, fraco, doente. Por isso ela quase
se envergonhava de oferecer tão vil presente ao seu Amado. Mas o
Senhor reconfortou-a, dizendo-lhe: «Eu
sinto maior alegria em receber o teu débil coração, oferecido com
tanto amor, do que se recebesse qualquer outro cheio de força e
robustez. É assim que, nas mesas dos grandes senhores, põe-se, de
preferência a um animal doméstico, um javali selvagem, muito tempo
perseguido pelo caçador, porque suas carnes são mais tenras e têm
um sabor mais delicado»6.
Senhor
do coração de sua amada, Jesus vai agora imprimir-lhe os selos que
o tornarão inviolável, que lho consagrarão para sempre.
Era
o dia da Purificação de Nossa Senhora. Gertrudes estava retida no
leito, por uma grave doença. Repassava ela na mente as graças de
que em tal dia, nos anos anteriores, tinha sido favorecida e começa
a entristecer-se por naquele ano se ver privada da visita do céu,
quando a Santíssima Virgem lhe apareceu e a consolou nestes termos:
«Não
te lembras de ter sofrido dores tão violentas no corpo. Pois bem;
anuncio-te que meu Filho te reserva um presente valioso, como ainda
até hoje não recebeste. Estes sofrimentos corporais foram-te
enviados a fim de te preparares dignamente para tal graça».
Consolada
com tão magnífica promessa, a Santa esperava ansiosa o que o seu
Amado lhe tinha reservado para aquele dia. Imediatamente antes da
procissão das velas recebeu a sagrada Comunhão. Durante a ação de
graças, 'enquanto estava atenta à presença de Deus dentro de mim
(são palavras textuais da Santa), eu vi a minha alma, qual cera
brandamente amolecida sob a ação do fogo, apresentar-se diante do
peito sagrado do Senhor, como diante de um selo, cuja marca devia
receber. De repente eu vi pousar esse selo divino sobre minha alma
que foi então introduzida nesse tesouro sagrado onde a plenitude da
Divindade habita corporalmente para ali ser marcada com o selo da
resplandecente e sempre tranquila Trindade'7.
“Da
mesma forma Jesus vai imprimir no coração de sua amada as suas
armas divinas e reais, os seus sagrados estigmas, vai feri-la com a
seta do amor, significando assim o seu domínio absoluto sobre aquele
coração.
Passou-se
este fato um ou dois anos depois do que a Santa chama sua
'conversão'.
Santa Matilde instruindo Santa Gertrudes |
A
serva de Deus dedicava uma sincera e ardente devoção às cinco
Chagas de Jesus Cristo. Para as honrar costumava repetir muitas vezes
uma oração que dizia assim: 'Ó misericordiosíssimo Senhor, gravai
no meu coração as divinas Chagas por meio do vosso Sangue precioso,
a fim de eu poder ler nelas, ao mesmo tempo, as vossas dores e vosso
amor', etc.
“O
anel é o símbolo da aliança; e, como tal, não pode faltar nas
uniões místicas celebradas entre Jesus e as almas. O divino Esposo
traz em seus dedos, segundo uma visão que ele se dignou favorecer
sua serva, anéis enriquecidos de pedras preciosas – símbolos dos
sofrimentos corporais e espirituais que as almas generosamente lhe
oferecem. Em troca desses anéis, Deus confere às almas outros bens
mais preciosos – as suas graças e consolações.
Gertrudes
recebeu-os de modo visível e admirável. É a própria quem o refere
nos termos seguintes:
'Um
dia, repassando no meu espírito os vossos benefícios, comparei a
minha dureza com esta divina ternura da infinita superabundância que
me enche de alegria e cheguei a este excesso de presunção de Vos
censurar por não terdes selado a vossa promessa pondo vossa mão na
minha, como soem fazer os que tomam um compromisso'.
'A
vossa bondade sempre condescendente, querendo satisfazer meu desejo,
disse-me: «A
fim de acabar para sempre com as tuas queixas, aproxima-te e recebe o
meu pacto».
'Logo,
do fundo de minha baixeza, eu vi que, com vossas duas mãos, me
abríeis o vosso Coração sagrado, arca da divina fidelidade e da
infalível verdade e me dáveis ordem para nele introduzir minha mão
direita, não obstante eu ser tão perversa que à semelhança dos
Judeus, buscava sinais e milagres'.
'Fechando
então esta abertura do Coração onde minha mão ficou presa, Vós
me dissestes: «Eu
te prometo conservar íntegros os dons que te confiei. Se a sábia
disposição da minha Providência visse privar-te dos seus efeitos
por algum tempo, eu me obrigo a dar-te depois o triplo em nome da
omnipotência, da sabedoria e da bondade da Santíssima Trindade, em
cujo seio vivo e reino, verdadeiro Deus, por todos os séculos».
Depois destas palavras tão ternas, retirei a mão que saiu ornada de
sete anéis, um em cada dedo e três no anular'8.
“A
Santa, humilde e confundida, foi um dia ter com Matilde, outra esposa
predileta de Jesus, e depois de lhe ter comunicado as graças
insignes com que Deus a favorecera, pediu-lhe que consultasse o
Senhor acerca das maravilhas nela operadas pelo divino Amor.
Acedendo
ao pedido, Matilde pôs-se em oração. Apareceu-lhe então o
Senhor Jesus, como um Esposo cheio de graça e encanto, mais belo do
que as miríades de anjos e ornado de um vestido verde franjado a
ouro. Trazia pelo braço direito, estreitamente apertado ao peito,
aquela por quem Matilde orava, de tá maneira que o coração da
santa virgem parecia unido à ferida de amor do Coração do Senhor.
Por sua vez, Gertrudes trazia, do braço esquerdo, bem apertado
contra si o seu Bem-amado.
Admirada
do que via, Matilde pediu ao Senhor a explicação da visão. Então
Jesus respondeu-lhe: «A
cor verde dos meus vestidos franjeados a ouro, representa a operação
divina que germina e floresce com vigor nesta alma. Vês seu coração
fixo na ferida do meu lado? É que eu a uni a mim dum modo tão
incomparável que, a todo hora, ela pode receber as influências da
minha Divindade»9.
Um
esposo encontra consolação e prazer em comunicar à sua esposa as
suas tristezas e alegrias. Não há segredos entre os dois. Assim
procedia Jesus com a sua amada.”
☛ NOTA:
Santa Gertrudes de Helfta será celebrada amanhã, dia 16 de
Novembro.
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2 Dom
Louis Gougaud, OSB cuja obra – Dévotions pratiques et
ascétiques du Moyen âge –
foi utilizada para elaboração o presente parágrafo, faz notar que
a narrativa (verídica ou lendária) da aparição de Cristo
Crucificado a D. Afonso Henriques, contribuiu muito para propagar a
devoção às cinco Chagas.
3 Sirvam-me
de remédio as cinco Chagas do meu Deus.
4 Livro
III, cap. II.
5 Livro
III, cap. LXVII.
6 Livro
III, cap. LVIII.
7 Livro
II, cap. VII.
8 Livro
II, cap. XX.
9 Livro
I, cap. XVI.
FONTE: opúsculo, em formato PDF, obtido do blog Alexandria Católica, Vida de Santa Gertrudes, P. B. Alves Ferreira, Coleção “Opus Dei”, XI Vol., Edição da Revista “Opus Dei”, Braga/1932, Cap. III-Os Segredos do Coração de Jesus, pp. 46-60 – Texto revisto e atualizado, e destaques acrescentados.
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